Entre a carta de uma menina que pedia casamento para fugir da miséria e o choro de um menino escravizado num barco, Jamil Chade encontrou o limite entre a reportagem e a humanidade.



Luiz Antônio Costa | O Som da Memória
Ele esperava uma autoridade da Etiópia. O sol caía impiedoso sobre o pátio poeirento quando duas meninas se aproximaram. Deviam ter uns treze anos, talvez menos. Olhos grandes, curiosos, e um sorriso tímido, desses que pedem licença para existir. Perguntaram quem ele era, de onde vinha, o que fazia ali.
O repórter respondeu com a calma de quem aprendeu que escutar também é parte do ofício. Quando se despediram, ele, num gesto quase automático, entregou seu cartão de visitas. E seguiu.
Algumas semanas depois, já de volta à Suíça, onde vivia, recebeu uma carta. Era de uma daquelas meninas. As palavras, escritas com esforço, traziam uma pergunta impossível:
— Você quer se casar comigo?
Ela contava que o irmão fora assassinado, a mãe morrera de enfarte e o pai abandonara a casa. Sozinha no mundo, via naquele repórter estrangeiro uma chance de escapar da miséria. Casar seria viver.
O jornalista, com o coração apertado, levou a carta até o escritório do Unicef. Mostrou ao funcionário, procurando uma saída, um caminho, uma esperança. O homem olhou, suspirou e apontou para uma pilha sobre a mesa — dezenas, talvez centenas, de cartas parecidas.
— Ela entra na fila, disse, resignado.
Naquele instante, o repórter entendeu que o drama da menina não era uma exceção, era uma rotina. E essa descoberta o feriu mais do que qualquer imagem.
Tempos depois, em outra viagem pelo continente, ele veria um menino de seis anos remando num barco de pesca. O pequeno chorava, e o jornalista pensou que fosse de frio, de fome, de cansaço. Mas o choro vinha de outro lugar: o menino havia sido estuprado pelo homem que o escravizava.
Duas histórias. Uma carta e um choro. Dois pedidos de socorro que o mundo fingiu não ouvir.
Ao contá-las, o repórter foi se engasgando com as próprias palavras, até que a voz se quebrou. E então ele chorou. Chorou por ela, por ele, e talvez por todos nós — que seguimos a vida, distraídos, enquanto tantas infâncias são devoradas pelo silêncio.
Há dores que não cabem numa reportagem.
Há histórias que não se escrevem — apenas se carregam.
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🖋️ Crônica de Luiz Antônio Costa, inspirada fatos reais relatados pelo jornalista Jamil Chade (foto), em entrevista a Chico Pinheiro, no ICL Notícias.

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