Governo federal deve pressionar por investigação independente


Dezenas de corpos são trazidos por moradores para a Praça São Lucas, na Penha, zona norte do Rio de Janeiro. Operação Contenção. 
Foto:  Tomaz Silva/Agência Brasil Rio de Janeiro (RJ), 29/10/2025

Da Redação da Rede Hoje

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em um tom de crítica contundente, manifestou-se sobre a recente e letal Operação Contenção, realizada no dia 28 de outubro, no Rio de Janeiro. Em entrevista concedida a agências internacionais de notícias, nesta terça-feira, o presidente não hesitou em classificar a ação policial como “desastrosa”, focando a sua avaliação nas consequências trágicas da operação. A alta taxa de mortalidade ofuscou qualquer outra medida de sucesso.

A Operação Contenção, que mobilizou 2500 policiais de diversas unidades fluminenses, tinha como objetivo atacar pontos estratégicos da facção criminosa Comando Vermelho nos complexos do Alemão e da Penha, na zona norte do Rio de Janeiro. Contudo, o resultado foi um banho de sangue, com tiroteios intensos que culminaram na morte de 121 pessoas, entre as quais quatro eram policiais, tornando-a a operação mais letal da história do estado do Rio de Janeiro.

O presidente da República foi além da crítica, revelando, de acordo com a agência de notícias Reuters, a intenção de seu governo de pressionar por uma investigação independente sobre os fatos. Lula enfatizou a necessidade de apurar as circunstâncias da ação, ressaltando a discrepância entre a ordem judicial e o desenrolar dos acontecimentos, que resultou em uma “matança”, e não apenas em prisões.

“O dado concreto é que a operação, do ponto de vista da quantidade de mortes, as pessoas podem considerar um sucesso, mas do ponto de vista da ação do Estado, eu acho que ela foi desastrosa”, disse o presidente. Ele reforçou que a ordem judicial era de prisão, e não de “matança”, o que demanda uma apuração minuciosa e desvinculada das autoridades que realizaram a ação.

A versão oficial do governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, sustenta que a operação “foi um sucesso” e que todos os homens que se renderam foram presos. No entanto, o relato de moradores das comunidades é alarmante, descrevendo dezenas de corpos encontrados na mata, muitos exibindo sinais claros de rendição, como mãos e pernas amarradas, e indícios de execução sumária e tortura.

As preocupações com a letalidade da Operação Contenção extrapolaram as fronteiras nacionais. A Organização das Nações Unidas (ONU) já havia se posicionado favoravelmente à realização de uma investigação independente. O objetivo é crucial: garantir a responsabilização pelos fatos, interromper o ciclo de violações de direitos humanos e assegurar a proteção de testemunhas, familiares das vítimas e defensores de direitos humanos envolvidos no caso.

Enquanto comentava sobre a operação, o presidente Lula estava em Belém, capital paraense que se prepara para sediar eventos de grande relevância global. A cidade receberá nos próximos dias 6 e 7 a Cúpula do Clima, com a presença de dezenas de chefes de Estado. Logo após, a partir do dia 10, será a anfitriã da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30).

A Polícia Civil do Rio de Janeiro, por sua vez, divulgou, no fim da noite do último domingo, um perfil com imagens de 115 das 117 pessoas mortas durante a operação. A nota distribuída à imprensa pelas autoridades policiais alega que “mais de 95% dos identificados tinham ligação comprovada com o Comando Vermelho” e que 54% eram de fora do estado. Apenas dois laudos periciais foram inconclusivos.

De acordo com o comunicado da Polícia Civil, a maioria dos falecidos, 97 das pessoas mortas, “apresentavam históricos criminais relevantes”, e 59 tinham mandados de prisão pendentes de cumprimento. A descrição é uma tentativa de justificar a ação em termos de segurança pública e combate ao crime organizado, dando o foco na alta periculosidade do grupo atingido na ação.

É admitido no comunicado oficial, todavia, que 17 das pessoas mortas “não apresentaram histórico criminal”, apesar de as investigações posteriores terem apontado que 12 delas “apresentaram indícios de participação no tráfico em suas redes sociais”. O tom da nota busca reafirmar a legitimidade da operação, colocando em xeque as acusações de excesso de força e a morte de inocentes.

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil A lista nomina as pessoas mortas como “neutralizados” e assinala que 62 desses são de outros estados.

A lista divulgada pela Polícia Civil categoriza os falecidos como “neutralizados”, e aponta que 62 deles são provenientes de outros estados brasileiros. Os dados indicam uma forte presença de criminosos de fora, com 19 do Pará, 12 da Bahia e 9 de Goiás, o que, para a polícia, reforça a tese de que o Rio de Janeiro é um ponto estratégico e de articulação de facções criminosas a nível nacional.

Um relatório da Polícia, que embasou parte da operação, aponta que o Rio de Janeiro serve de refúgio e ponto de articulação para “chefes de organizações criminosas de 11 estados da Federação, de quatro das cinco regiões do país.” Isso demonstra a complexidade e a abrangência do problema do crime organizado que as autoridades fluminenses tentaram combater na Operação Contenção.

Apesar da magnitude da operação e do número de mortos, o principal alvo da ação policial, Edgar Alves de Andrade, conhecido como “Doca” e líder do Comando Vermelho (CV), segue em liberdade. O fato de o líder da facção ter escapado, mesmo após seis dias da operação, levanta questionamentos sobre a eficácia e o planejamento estratégico da ação policial.

Um dado importante, e que reforça a necessidade de investigação, é que nenhuma das pessoas que foram mortas na Operação Contenção havia sido previamente denunciada à Justiça pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Essa ausência de denúncias formais prévias à ação gera dúvidas sobre a real situação legal e o nível de envolvimento criminoso de todos os falecidos.

Diante da gravidade dos acontecimentos, a Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro (OAB-RJ) agiu e criou um observatório dedicado a acompanhar a apuração sobre o cumprimento da lei por parte das polícias Civil e Militar durante a Operação Contenção. A iniciativa da OAB-RJ visa garantir a transparência e a legalidade dos processos investigativos subsequentes à operação.

Violações em Operação

Relatos colhidos pela Ouvidoria Geral da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, após a realização da Operação Contenção, na última terça-feira (28), denunciam graves violações de direitos humanos nos complexos do Alemão e Penha. Entre os relatos, colhidos entre 30 de outubro e 1º de novembro, familiares dizem que pessoas inocentes foram mortas ou presas, e mulheres relatam ter sido assediadas por policiais, o que adiciona uma camada de violência de gênero à ação.

Uma mulher de 23 anos, que não foi identificada, relatou que policiais “ficaram me secando e dizendo que uma mulher bonita como eu merecia morar em um lugar melhor.” Ela detalhou que, ao sair, um policial com balaclava apertou seu peito, em um ato de importunação sexual durante a invasão domiciliar. A Ouvidoria Geral é um órgão externo à Defensoria Pública, o que confere maior independência à coleta dos depoimentos.

Outra mulher ouvida, que trabalha como manicure, disse em depoimento ter acordado assustada enquanto dormia de blusa, sendo surpreendida por policiais já dentro de sua casa. O relato conta que os agentes levantaram o lençol com a ponta do fuzil e depois ficaram encostando a arma em sua blusa, enquanto ela implorava por respeito e dizia não ter envolvimento com o tráfico, até que um outro agente interveio.


Relatos colhidos pela Ouvidoria Geral da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, após a realização da Operação Contenção, na última terça-feira (28), denunciam graves violações de direitos humanos nos complexos do Alemão e Penha. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Os relatos chocantes constam no relatório Atuação da Ouvidoria da Defensoria Pública na Operação Policial realizada no Complexo do Alemão e no Complexo da Penha, divulgado neste domingo (2). Segundo os ouvidores, a operação impactou a realidade dos moradores, com o fechamento de escolas, clínicas da família e equipamentos de assistência social, causando uma paralisação da vida cotidiana.

“Os equipamentos públicos fechados geraram prejuízo à vida de inúmeras crianças e adolescentes,” diz o relatório. Fora da escola, crianças e adolescentes ficaram sem aula e, crucialmente, sem a garantia da alimentação diária, alcançando a insegurança alimentar. Idosos e usuários do Sistema Único de Saúde também foram afetados, ficando sem acesso a consultas e medicações controladas, além de problemas de coleta de lixo e falta de energia.

Uma pessoa não identificada relatou que os policiais “entraram e invadiram a casa dos moradores todos, né? Obrigando eles a abrir as portas na marra.” A percepção é de que não houve respeito por crianças e idosos, sob a premissa de que “todo mundo que mora na favela é traficante,” ignorando a presença de professores, advogados e trabalhadores honestos que residem nessas comunidades.

As violações de direitos humanos colhidas em detalhes são graves: "roubos de documentos de moradores, importunação sexual às mulheres do território, uso de casas para prática de tróia [se esconder à espera de suspeitos], denúncias de torturas, execuções, ausência de perícias, uso de bombas direcionadas às casas, omissão de socorro, criminalização das lideranças e das famílias que fizeram a remoção dos corpos”.

Os ouvidores estiveram pessoalmente nos complexos do Alemão e da Penha, além de realizarem visitas ao Instituto Médico Legal (IML). Eles também acompanharam in loco a retirada dos corpos na região de mata chamada Vacaria. Foi neste acompanhamento que a equipe pôde atestar a violência extrema, identificando que alguns corpos estavam com as mãos amarradas e muitos com tiros na cabeça e marcas de facadas.

Entre os relatos, estão ainda depoimentos sobre pessoas inocentes que teriam sido mortas ou presas. “Meu marido é pedreiro e foi morto nessa operação. Achei o corpo dele ontem e estou precisando de apoio para enterrar”, diz uma pessoa, reforçando a alegação de que a letalidade atingiu cidadãos não envolvidos com a criminalidade, no que seria um grave erro operacional.

Em um caso ainda mais alarmante, uma pessoa conta que o marido foi baleado e está hospitalizado, mas que uma arma foi plantada em seu carro. O veículo foi levado para a Cidade da Polícia, onde, “por milagre, encontraram uma arma.” A vítima, um trabalhador, estava algemada e em pânico no hospital, precisando ser sedada, enquanto a família clama por ajuda, afirmando que a arma não estava no carro durante a revista inicial.

No relatório, a ouvidoria faz uma série de sugestões de medidas para evitar a ampliação de mortes e as violações de direitos nas favelas. Entre elas, estão a implementação de mecanismos eficientes de controle das polícias, como o uso efetivo das câmeras em fardas e viaturas, e a exigência de independência das perícias em casos de violência de Estado, garantindo investigações justas.

Outras sugestões incluem a investigação da responsabilidade da cadeia de comando operacional e política pelas altas taxas de letalidade policial e a criação de um fluxo rápido de reparação às famílias afetadas pela violência de Estado. O relatório defende ainda o investimento em políticas públicas de garantia de direitos à população, em especial a juventude, como forma de enfrentar o problema estrutural da segurança.

Em nota enviada à Agência Brasil, a Secretaria de Estado de Polícia Militar se manifestou, garantindo que a corporação “colabora integralmente com todos os procedimentos apuratórios e investigativos sobre as ações.” O Ministério Público também está sendo pressionado a aumentar a efetividade do controle externo da atividade policial, conforme determinado pelo STF na ADPF 635, garantindo que as denúncias sejam atendidas rapidamente.


Com informações da Agência Brasil


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