Denúncias de maus-tratos, violência sexual e cárcere privado em Juatuba reacendem debate sobre o modelo de internação e fortalecem campanha nacional por fiscalização e fechamento de comunidades terapêuticas.
Profissionais de saúde e defensores dos direitos humanos relataram, em audiência na ALMG, situações de tortura e violação em comunidades terapêuticas de Minas. (Foto: Willian Dias/ALMG)
Da Redação da Rede Hoje
Casos graves de tortura, abusos sexuais e maus-tratos em comunidades terapêuticas voltaram a expor a fragilidade da fiscalização e o desrespeito aos direitos humanos em Minas Gerais. O tema foi discutido nesta quarta-feira (15) em audiência pública na Assembleia Legislativa de Minas (ALMG), após uma operação em Juatuba, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, revelar um cenário de violência e abandono em instituições destinadas ao tratamento de dependentes químicos e pessoas com transtornos mentais.
Durante o mês de setembro, cinco dessas entidades privadas foram interditadas por uma força-tarefa composta pela Polícia Militar, Vigilância Sanitária e Secretaria de Assistência Social. Ao todo, 60 pessoas foram resgatadas em condições degradantes, segundo relatos da coordenadora do Centro de Atenção Psicossocial (Caps I) de Juatuba, Sildézia Francisco de Andrade. Ela contou que pacientes eram mantidos sedados, agredidos fisicamente, forçados a trabalhar e impedidos de deixar as instalações.
“Quem se recusava a tomar os medicamentos misturados nas bebidas, apelidadas de ‘danoninho’, era pisoteado. Um deles chegou a ser pressionado com o pé no pescoço até abrir a boca”, relatou Sildézia, emocionada. Ela afirmou que algumas vítimas apresentavam ferimentos graves, provocados por golpes de mangueiras e maus-tratos constantes. Segundo a profissional, mesmo após o fechamento de algumas unidades, outras continuam em funcionamento no município, com o apoio de familiares e, em alguns casos, de autoridades locais.
A servidora também revelou a existência de pacientes internados sem diagnóstico de dependência química. “Uma jovem de 23 anos, muda e autista, foi colocada em uma dessas comunidades porque a família queria sossego. É revoltante”, disse. Para ela, a área rural de Juatuba facilita a ação de grupos que mantêm essas práticas de forma clandestina e com pouca fiscalização.
Campanha nacional. As denúncias de Juatuba reacenderam o debate sobre a necessidade de pôr fim às comunidades terapêuticas, movimento que ganhou força com o lançamento de uma campanha nacional no último dia 10. Geovanna Carazza, da Frente Mineira Drogas e Direitos Humanos, afirmou que os casos de violência não são isolados. “Essas instituições funcionam com uma lógica de punição, disciplina e religiosidade imposta, que ignora a ciência e os direitos humanos”, disse.
Ela lembrou que, em 2020, o Conselho Regional de Psicologia de Minas constatou abusos sexuais e até homicídio de adolescentes na Comunidade Desafio Jovem Maanaim, em Itamonte, no Sul de Minas. Para os militantes, esses episódios demonstram o fracasso do modelo de internação baseado em isolamento e coerção.
Anísio Martins, ex-interno e hoje membro da Associação de Usuários dos Serviços de Saúde Mental (Asussam), reforçou a defesa da Rede de Atenção Psicossocial (Raps). “A comunidade terapêutica é clínica sem médico e terapia sem terapeuta. É tortura psicológica. Não ajuda, só agrava o sofrimento”, afirmou.
Os participantes da audiência apontaram que muitas dessas entidades são sustentadas com recursos públicos, apesar das graves denúncias. Segundo a assessora da Secretaria de Estado de Saúde, Camila Miller D’Assumpção, os repasses às comunidades não fazem parte da política da Raps, mas decorrem de programas do próprio governo estadual.
Projeto e resistência política. A deputada Bella Gonçalves (Psol), presidenta da Comissão de Direitos Humanos da ALMG e autora do Projeto de Lei 2.049/24, propôs a criação de um Disque Denúncia das Comunidades Terapêuticas e Clínicas de Reabilitação. A proposta está parada desde abril na Comissão de Constituição e Justiça. “Há resistência de parlamentares que defendem essas comunidades. Mas precisamos de um canal que permita denunciar e coibir essas práticas criminosas”, afirmou.
De acordo com Bella Gonçalves, Minas vive um “infestamento” de instituições que operam sem controle. “Faltam fiscalização e transparência. O disque denúncia seria uma ferramenta para salvar vidas e impedir novos abusos”, acrescentou. Ela também celebrou a recente derrota do governo estadual, que tentou usar recursos do Fundo de Erradicação da Miséria para financiar comunidades terapêuticas.
Camila Augusta dos Santos, militante do Fórum Mineiro de Saúde Mental, reforçou que o Estado se tornou um polo dessas entidades e que as denúncias crescem a cada mês. “É inaceitável que dinheiro público continue sustentando espaços de tortura. O disque denúncia é um mecanismo de proteção, não apenas uma medida administrativa”, afirmou.
Para os defensores dos direitos humanos, o enfrentamento ao modelo das comunidades terapêuticas deve vir acompanhado do fortalecimento das políticas públicas de saúde mental. O objetivo é garantir acolhimento humanizado, baseado em evidências científicas e em respeito à dignidade das pessoas. Enquanto o projeto de Bella Gonçalves segue em tramitação, familiares e ex-internos esperam que os casos de Juatuba sirvam de alerta e que novas vítimas não sejam silenciadas pelo isolamento e pelo medo.