
Luiz Antônio Costa | Contos da Estrada
O relógio marcava quase dez da noite quando Meire empurrou a porta do “Velho Solar”, um bar discreto na esquina da rua principal da cidade. A neblina da noite se misturava ao cheiro agridoce de chope e madeira velha. Meire caminhou devagar até o balcão, como quem já conhecia o caminho de cor. Pediu um chope — “bem tirado, hoje” — e ficou observando o reflexo trêmulo das luzes na espuma dourada que se formava no copo.
Os frequentadores habituais fingiam não notar sua presença, mas todos sabiam quem era. Meire era dessas presenças silenciosas que o tempo não apaga. Vinha sempre sozinha, sempre tarde, e bebia devagar, como se o mundo fosse um lugar onde o esquecimento tivesse gosto de chope.
Naquela noite, porém, alguém diferente se sentou a dois bancos de distância. Um homem de camisa branca amarrotada, olhar tranquilo e voz de quem já viveu demais. Ele a observou por alguns minutos antes de dizer:
— Você parece guardar o mundo inteiro nesse copo.
Meire não respondeu. Só girou o copo lentamente, como quem teme que qualquer palavra derrame mais do que o líquido. O homem continuou:
— Às vezes a gente acha que é o copo que pesa. Mas é o que a gente coloca dentro dele.
Ela olhou para ele pela primeira vez. Não com interesse, mas com o cansaço de quem já tentou acreditar. Havia uma bondade despretensiosa na voz dele. Meire suspirou.
— O senhor é poeta ou psicólogo?
— Nem um nem outro. Só alguém que aprendeu a ouvir histórias de bar — respondeu o homem, sorrindo.
O silêncio se instalou novamente, preenchido pelo som dos talheres batendo nos pratos e das conversas abafadas. De repente, o homem tirou do bolso um lenço branco e o colocou sobre o balcão.
— Um dia, alguém me deu isso quando eu achava que nada valia a pena. Disse pra eu guardar as lágrimas que ainda me fariam falta. Nunca mais precisei dele. Talvez agora sirva pra você.
Meire olhou o lenço como quem vê algo precioso e esquecido. Tocou-o com a ponta dos dedos, hesitante. Nenhuma lágrima caiu — apenas um leve tremor percorreu seu rosto, como o início de um choro que ela se recusava a ter.
Pagou a conta e levantou-se.
— Amanhã, talvez eu traga o lenço de volta — disse, já de costas.
— Amanhã sempre vem — respondeu o homem, sem olhar para ela.
Na porta, Meire hesitou por um instante. A noite ainda estava fria, mas havia algo diferente no ar. O bar ficou para trás, o lenço guardado na bolsa e, dentro dela, a semente de uma decisão.
Na manhã seguinte, quando o sol riscou o horizonte da cidade, Meire caminhava pela avenida rumo ao mercado municipal. O lenço branco estava agora amarrado no punho, como lembrança e promessa. Não sabia o que viria depois — só sabia que, pela primeira vez em muito tempo, o amanhã tinha outro gosto.
E no “Velho Solar”, o homem da camisa branca olhou o banco vazio e sorriu. Sabia que, às vezes, basta um lenço e um pouco de escuta para mudar o rumo de uma vida.
Este conto é intertexto da música "Darling", de Renato e Seus Blue Caps