Na semana passada, a Rede Hoje iniciou a publicação de "Contos da Estrada", à maneira dos antigos jornais e revistas que, depois, reuniam os textos em coletâneas e transformavam em livros. Assim será também com esta série de histórias — um conto por semana — que mais adiante ganhará forma em livro.

Abrimos a série com "Entre Flores e Lembranças: o jardim de Isabel".
Hoje, trazemos o segundo conto:

À sombra do Flamboyant
Imagem produzida por inteligênica artificial

Era fim de tarde quando o jornalista chegou à entrada da cidade. Ali, à sombra generosa de um flamboyant antigo, um ancião descansava em um banquinho improvisado. O banco, gasto e torto, parecia tão velho quanto o homem que o ocupava.
O viajante parou, enxugou o suor da testa e se aproximou.

— Boa tarde, seu moço. Será que posso me sentar um pouco aqui? — perguntou.
— Boa tarde. Claro que pode. O banco é simples, mas aguenta dois. Quer um gole d’água? — ofereceu o velho, erguendo uma garrafa de alumínio.
— Aceito, sim. Obrigado.

O jornalista bebeu e, em pouco tempo, os dois já conversavam como velhos conhecidos. O ancião tinha um jeito simples e acolhedor, desses que desarmam qualquer estranhamento.

Foi quando um homem que passava na estrada parou diante deles.

— Com licença, senhores... O senhor pode me dizer como é o povo dessa cidade? Estou pensando em me estabelecer por aqui.

O ancião não respondeu de imediato. Apenas devolveu a pergunta:

— Me diga: e lá de onde o senhor vem, como é o povo?

— Eu vim de Tangará. Olha... gente difícil, sabe? Fofoca todo dia, intriga o tempo todo. Não há sossego. Foi um inferno viver lá.

O velho coçou o queixo, pensou um instante e disse:

— Pois aqui é igualzinho. Todo dia tem confusão, uma falação sem fim. Acho melhor procurar outro canto.

O homem suspirou fundo, agradeceu e seguiu viagem.

O jornalista permaneceu, curioso com a resposta. O ancião, então, começou a falar sobre a cidade:

Contou o caso de um fazendeiro assassinado numa tocaia armada pelo próprio genro, perdido em dívidas de jogo. O homem chegou a ajudar a polícia nas buscas, chorou com os familiares no velório do sogro, mas anos depois acabou desmascarado e preso.

Recordou também a tragédia de uma moça encontrada morta em um terreno baldio. O crime chocou a cidade e dominou por meses os programas policiais da rádio. No fim, descobriram que o assassino era um lutador de artes marciais recém-chegado ao lugar.

E, entre histórias de crimes e lembranças, o ancião suspirou saudoso:

— Ah, mas bons tempos eram os do “misto”. Todo dia, de manhã, em trem passava rumo a Belo Horizonte; à tarde, chegava outro indo para Goiânia. Gente e carga misturados, sempre uma festa na estação. Hoje só passam esses trens de carga, o dia todo, com apitos que mais assustam do que animam a vida.

Enquanto falava, outro viajante se aproximou.

— Boa tarde, senhores. O senhor pode me dizer como é o pessoal desta cidade? Estou pensando em me mudar.

Mais uma vez, o ancião devolveu a pergunta:

— E lá de onde o senhor vem, como é o povo?

— Lá é bom demais! Gente amiga, solidária. Só que o frio acabou com a saúde do meu filho. O médico recomendou um lugar mais quente. Apareceu uma oportunidade de trabalho, e aqui estou.

O velho abriu um sorriso largo:

— Pois então seja bem-vindo. Vai ser muito feliz por aqui. O povo é acolhedor, e a cidade, agradável.

— Muito obrigado! — respondeu o homem, animado, antes de seguir rumo ao centro.

O jornalista, intrigado, não resistiu:

— Preciso entender, meu senhor. Para o primeiro viajante, o senhor disse que a cidade era ruim. Para o segundo, que era boa. Afinal, como é realmente esse lugar?

O ancião olhou para a estrada, os olhos brilhando sob a copa do flamboyant:

— Meu rapaz, a cidade é boa ou ruim dependendo de quem a vive. Não é o lugar que molda a pessoa, mas o que a pessoa leva dentro de si. Para quem carrega amargura, não há terra que baste. Para quem vem com esperança, qualquer chão é fértil.

O jornalista sorriu. Levantou-se, agradeceu pela água, pelas histórias e, sobretudo, pela lição. Despediu-se e retomou a estrada, levando consigo o eco da voz do ancião e a sombra acolhedora do flamboyant.


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