Minha mãe partiu nesta terça-feira. No último dia de agosto. Dona Dina, como gostava de ser chamada – detestava seu nome Benvinda, tinha 90 anos. Minto, 91, porque faria aniversário daqui a pouco mais de um mês, dia 18 de outubro. Ela morreu de complicação de diabetes e também em decorrência da idade avançada, mas, mesmo assim, atendendo a um decreto municipal (que não questiono em virtude da pandemia) o velório – foi restrito a 15 minutos a noite para membros da família e duas horas pela manhã, começando daqui a pouco às 9 horas.

Dona Dina era intensa em tudo. Aquela mãe de amor exigente, como todas dos anos 60, quando eu era criança. Muito severa, mas muito amorosa. Ela me chamava por três nomes na infância. De forma carinhosa: “meu neguinho”, “meu negão” e quando ia falar sério eu era o “senhor Luiz Antônio Costa” ou simplesmente “Luiz”. Quando ela falava o meu nome completo, eu tremia na base. Aquela baixinha atarracada, libriana, não era fácil.

No meu primeiro livro de crônicas “O Som da Memória”, conto passagens interessantes da criação que ela deu a mim e aos meus irmãos. Escolhi uma, para lembrar a doçura de Dona Dina. Está nas páginas de 28 a 30 com o título “Café da Manha”:

Meus irmão e eu gostávamos de junho e do inverno de maneira geral. E não é difícil saber porquê. A dona Dina, matriarca da família Costa, levantava antes de todos — como todas as mães — e com carinho e paciência nos chama para irmos à escola. No futuro seremos oito. Naquele tempo éramos quatro, mas só dois iam pela manhã à escola João Beraldo, no bairro São Francisco: minha irmã Joana Darc (que chamamos de Darquinha) e eu.

Tá. Mas por que gostávamos tanto de inverno? Porque é nessa estação que nós sentávamos no no “rabo” do fogão a lenha. Ainda ouço o som daquele fogo quente e gostoso crepitando em minha memória. Ali, a gente assistia à nossa mãe preparando o café da manhã e o leite — que vinha do curral que ficava atrás da casa, onde meu pai ordenhava as cinco vacas que tínhamos antes de ir para o trabalho os Correios — com chocolate quente.

Minha mãe tinha um ritual para preparar aquele café: primeiro pegava um mancebo(suporte) de madeira, feito com três ripas, no formato parecido com cone destes de trânsito, que começava largo embaixo e ia afunilando. Uma peça de madeira em cima, com um buraco redondo, onde minha mãe, a dona Dina, colocava o enorme coador de pano.

Colocava a água pra ferver numa caçarola — que chamávamos de “Rabinha” — já adicionava o açúcar, pegava da lata o café que ela mesma torrava num moedor em forma de globo que toda casa tinha e também moi, num moedor que é fixado na lateral da grande mesa da cozinha.
O cheiro daquele café torrado e
moído eram impressionantemente gostoso(aliás, nunca mais senti aquele cheiro). Então, ela colocava aquele pó de café no coador. Logo em seguida, adiciona a água fervente. Aquele vapor subia e ao mesmo tempo espalha o aroma de café pela cozinha. Do lado do coador também surgia o vapor. Em seguida, minha mãe partia um queijo fresco, ainda com soro e nos dava ou então, um farto pedaço de bolo de fubá, que tirava do forno. A chaminé expulsava a fumaça pra fora da casa e saia por cima do telhado, denunciando que tinha alguém em atividade ali.

Dona Dina pegava o bule esmaltado azul (não tinha garrafa térmica em casa), as xícaras com desenhos florais, nos servia aquele café delicioso e fumegante. E orientava com carinho e preocupação: — Depressa gente, senão cês perdem a aula.

Mas na cauda daquele fogão de cimento vermelho, mexendo a lenha que levanta uma enorme labareda, mesclando amarelo, vermelho entre outras cores, minha irmã Darquinha e eu continuávamos quietinhos como que não quer sair da cama em dia de chuva. Minha mãe servia o chocolate com leite quente, já com cara de poucos amigos. E a gente se fingindo de mortos.

Até que na sua condição hierárquica, ela chega na cozinha com o chinelo na mão esquerda (ela era canhota e eu herdei isso dela também):

E aí, vocês vão descer desse fogão agora e sair já pra escola ou querem que eu esquete a bunda de vocês?

Era a senha. Manda que pode, obedece quem tem juízo. A gente desce rapidinho, passa a mão na pasta e… rua, a caminho da escola.

Afinal, naqueles tempos além do carinho, afeto, amor e educação, a autoridade dos pais nunca era questionada. Quando isso acontecia — e de vez em quando acontecia — o “coro cantava”. Que bom que isso mudou. Mas aqueles eram outros tempos.

Hoje, já não dá pra usar o fogão a lenha. É melhor usar o gás que vem da Bolívia, num fogão de quatro ou seis bocas que não gera fumaça, carvão, nem cinzas. Aliás, nem sei como consegue gerar calor. As chaminés que poluem e provocam o efeito estufa estão fora de cogitação. Até as lareiras são usadas da forma mais cuidadosa, porque a pessoa pode dormir próximo, inalar o monóxido de carbono e morrer. Lembram da história da morte do casal de namorados numa pousada em Brumadinho, aqui em Minas?

Minha mãe, agora com 80 anos (lembrem que esta crônica tem 10 anos), invés de fazer o bolo de fubá, moer, torrar e coar o café, buscar o leite no curral e colocar a linha no fogão para cozinhar, já não tem forças e nem precisa fazer esses sacrifícios.

Agora, convenhamos, as coisas ficaram mais práticas e fáceis, a família está criada e todos os produtos que citei ela, a dona Dina, encontra na gôndola do supermercado da esquina. Claro, industrializados, padrão de higiene de acordo com a vigilância sanitária, mas produzidos em escala. Sem o mesmo aroma, o mesmo sabor, sem nenhum amor”.

Pois é. Agora ela foi para o seu merecido descanso, mas deixou essa dor devasta a todos que são sangue do seu sangue. Para homenagear dona Dina, roubo uma poesia de Francisco Petrônio, cantor brasileiro que ela gostava, quando eu era criança. A poesia que virou música se chama “Mãe, o Amor Profundo”. É simples e linda como qualquer mãe:

Mãe

É uma só, que a gente tem no mundo

Mãe

É o amor mais puro

E mais profundo

Oh minha santa mãezinha

Que tantas vezes eu fiz chorar

Aqui vim para dizer-te

Que sempre, sempre hei de te amar

Mãe

Pensar que um dia poderás faltar-me

Mãe

Pensando nisso vivo a lamentar-me

Por isso nas minhas preces

Tenho pedido ao Criador

Que nunca, nunca me falte

O teu carinho o teu amor

Mãe, o amor mais puro, é o amor do teu coração

É puro como a água cristalina da fonte

É como o cantar dos pássaros ao amanhecer de um novo dia

É como um botão de rosa que desabrocha na primavera

E nem todo o amor deste mundo, se o mesmo pudesse eu dar-te

Jamais poderia pagar-te, tanto carinho, tanta dedicação”.



O último encontro foi domingo, 28, na casa de minha irmã mais nova Eleusa, com que ela morava e que organizou um almoço em família


Vá encontrar com Deus, pois seu papel aqui está mais que cumprido, mãe. Descanse na Paz! Te amo!

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